terça-feira, outubro 27, 2009

PAULO FREIRE DESENVOLVEU NOVO CONCEITO DE LEITURA E ESCRITA: leia trecho

da Folha Online

"Ler, segundo Freire, não é caminhar sobre as letras, mas interpretar o mundo e poder lançar sua palavra sobre ele, interferir no mundo pela ação", diz o professor e vice-presidente da TV Cultura Fernando José de Almeida, em seu recente livro "Folha Explica: Paulo Freire".

Lançamento de "Paulo Freire" ocorre nesta quarta (28), em SP

Divulgação
"Folha Explica" analisa a vida e a obra do educador Paulo Freire
"Folha Explica" analisa a vida e a obra do educador Paulo Freire

De forma clara e objetiva, o título analisa a vida e a obra desse que é um dos maiores educadores do Brasil, mostra uma reflexão sobre a "pedagogia do oprimido", criada por Freire, e deixa clara a importância mundial de seus projetos político-pedagógicos.

Também destina um capítulo especial com cronologia e as principais obras do educador --que tem obras traduzidas para mais de 20 línguas.

Conheça, no trecho abaixo, os pensamentos de Paulo Freire e seu programa de alfabetização que marcou as quatro últimas décadas do século 20, e que interferiu no mundo da educação em todos os continentes.

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Ler o mundo para se libertar

O método criado por Paulo Freire para alfabetização de adultos foi, sem dúvida, sua maior contribuição à educação. Não apenas pela capacidade de alfabetizar em 40 horas. Seu sucesso está marcado pelo fato de ter desenvolvido um novo conceito de leitura - e com ele um novo conceito de escrita. Ler, segundo Freire, não é caminhar sobre as letras, mas interpretar o mundo e poder lançar sua palavra sobre ele, interferir no mundo pela ação. Ler é tomar consciência. A leitura é antes de tudo uma interpretação do mundo em que se vive. Mas não só ler. É também representá-lo pela linguagem escrita. Falar sobre ele, interpretá-lo, escrevê-lo. Ler e escrever, dentro desta perspectiva, é também libertar-se. Leitura e escrita como prática de liberdade.

A escrita é também objeto do pensamento e da vida. O mundo ao sul da linha do Equador é marcado pela oralidade; aqui, a escrita e a leitura são um distintivo de poder. Portanto, a criação de uma política de desenvolvimento de participação do mundo da leitura e da escrita significa redimir as massas excluídas de 500 anos de história. A leitura do mundo antecede a leitura das letras. A leitura assim é um fato político cultural de participação. Desse ponto de vista, um adulto ler frases como "vovó viu a uva" deixou de ser um fato educacional pacífico e virou um absurdo político, já que a frase não tem nenhum significado para o adulto que se alfabetiza. É um desrespeito a ele e o esvazia de sua dimensão cidadã.

Há 60 anos10, havia ainda 50% de analfabetos no país - por absoluta opção política. Dirigentes, classes médias e baixas, clero, latifundiários e minifundiários, políticos, todos achavam que os analfabetos eram uma espécie de praga, uma mancha na cultura nacional. Mais uma vez, a vítima era a culpada. Alguns viam os analfabetos como uma espécie que nasce por acaso e faz parte de um sistema ecológico de equilíbrio social. De lá para cá, houve progresso.

Em 2008, o estado de São Paulo chega ao menor número relativo de analfabetos na sua história: 4%. Pela primeira vez na história, o número de analfabetos maiores de 15 anos começa a diminuir a partir de 2002, chegando a 10 milhões em todo o país. Isso acontece pelo simples fato de que não geramos novos analfabetos, pois todas as crianças estão na escola. Mas o estoque de analfabetos se mantém e este número só abaixará pela morte deles!

Não acabamos ainda com o analfabetismo, embora estejamos acabando com os analfabetos. Todo o trabalho de Paulo Freire, todos os anos de exílio, todos os festejos na sua volta, não ajudaram o país a fazer a lição: dar direito à leitura e à escrita a seus cidadãos. Todos.

Elementos do seu método

O método construído por Paulo Freire a partir de sua prática pedagógica, em articulação com os carentes sociais e culturais de seu estado de Pernambuco, gerou um programa de alfabetização que marcou as quatro últimas décadas do século 20. Pode-se dizer que esse método interferiu no mundo da educação em todos os continentes. Partindo de "temas geradores", o método propiciava uma reflexão do alfabetizando sobre os seus próprios problemas - o que gerava a necessidade de posicionar-se sobre tais questões e de expressá-las em formas próprias de comunicação. Com o método de Freire, os adultos não se sentiam alheios aos temas de sua escrita e a leitura virava um aprofundamento do que já vinham vivendo, em suas experiências como trabalhadores e cidadãos.

Se os temas geradores fossem, digamos, terra, latifúndio, favela, enxada, foice, casa, eram essas as palavras a serem lidas e escritas, com seus significados debatidos. Toda a gama de desmembramento de outras palavras era oriunda dessas sílabas componentes das palavras--temas. FA-VE-LA pode gerar: ve-la, fa-la, la-ve, lu-va, fa-va etc., assim como outras inúmeras composições com seus diversos grupos silábicos, num imenso repertório de possibilidades. Com isso, os jovens ou adultos constroem palavras nascidas de seu repertório "gerador"; e sendo elas debatidas, escritas e faladas, podem transformar as suas realidades pela práxis.

Os problemas de alfabetização não pararam aí: da perspectiva do método, o desafio contemporâneo é continuar a construir, com os leitores-aprendizes, a problematização sobre os temas geradores em cada nova realidade - como no mundo digital, especialmente. Tornado realidade pela reorganização do capitalismo volátil, o mundo digital deve ser também objeto de um novo processo da alfabetização. O mundo digital em nada é menos opressor ou menos desumanizador que o mundo do latifúndio ou da favela. São desafios mais sutis e mais encobertos em aparências de globalização democrática.

Como Paulo Freire pode ser chamado para ajudar a desenhar um método de alfabetização crítico-digital? Para estar neste mundo e poder participar de suas potencialidades é preciso dominá-lo. Este domínio não se dará pelo controle simples de seus manuais de instrução ou pela manipulação de seus teclados e softwares - "caminhar sobre as letras", como dizia Freire. Tal participação demanda um aguçamento do senso crítico, acompanhando a discussão de seus problemas e de suas perspectivas. Este domínio se desenvolve também com a compreensão de seus instrumentais: navegar na internet, trabalhar com um processador para escrever um texto, poder enviar uma mensagem para o outro lado da cidade ou do mundo, criar uma agência de notícias ou editar jornais comunitários, divulgar seu currículo na rede: tudo isso pode ser um caminho freireano de uso crítico e político.


"Folha Explica: Paulo Freire"
Autor: Fernando José de Almeida
Editora: Publifolha
Páginas: 104

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